Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Sempre gosto quando encontro alunos, ou ex-alunos, em livrarias. Isso me dá um prazer inenarrável, como diria Scarlet Moon. Esta semana fiz uma visita a um sebo, existem poucos em Cuiabá, e fui para comprar livros, o que nem sempre acontece. Sim, pois de vez em quando a gente entra apenas para ver, pesquisar, passar o tempo. Mas em algumas oportunidades já saímos de casa de caso pensado, com a ideia fixa de comprar mesmo.

2-sebo-nova-florestaNa verdade, precisava de um específico, que sabia estar lá, já o vira anteriormente e fui resgatá-lo da poeira da prateleira inferior da bancada de Mato Grosso. Mas resolvi dar uma olhada na pilha promocional em busca de preciosidades. Escolhi uns sete ou oito e avancei para a literatura brasileira, percorrendo a ordem alfabética que meu transtorno obsessivo compulsivo respeitou de maneira sintomática.

Estimei o gasto em R$ 100,00, no máximo, e o que fui buscar já me levaria uns R$ 35,00. Escolhe daqui, dali, tira este, fui lendo algumas coisas, emocionando-me com determinadas histórias e coloquei na cesta um que surgiu inusitadamente aos meus olhos e do qual foi impossível me livrar. Até pelo preço convidativo e o momento atual que me cobrou essa reflexão. Cartas do Brasil, do jornalista Ricardo Kotscho. A obra foi publicada em 1992 e traz no conjunto de crônicas publicadas uma reflexão sobre o governo Collor e os desmandos da república dos marajás.

cartas-do-brasil-ricardo-kotscho-14757-MLB4617895982_072013-FAo olhar as 43 crônicas do livro, pude passear por um passado próximo que conheci de perto, como todos os brasileiros com mais de cinquenta anos. Digo cinquenta, porque o movimento cara-pintada, de 1992 tinha em média dezesseis anos de idade, hoje sendo quarentões, muitos dos quais apresentando um comportamento bastante conservador, com relação ao que apresentavam em sua juventude. É bom lembrar que o presidente da União Nacional dos Estudantes naquele momento era o atual senador Lindenbergh Farias, do Partido dos Trabalhadores. O prefácio do livro é de Luiz Inácio Lula da Silva, amigo pessoal do jornalista. Em seu texto de apresentação, Kotscho se refere ao período dizendo que:

Desta vez, porém, parece que chegamos ao fim de um ciclo da vida brasileira, o da impunidade dos donos do poder. Quem sabe, estamos entrando agora no ciclo de pequenos heróis anônimos, como Norberto Cruxen, que fazem do seu trabalho um prazer, um constante exercício da cidadania (KOTSCHO, 1992, P. 13).

O ciclo continua, e as análises contidas em Cartas do Brasil continuam valendo, sobretudo no que diz respeito à nossa arcaica estrutura partidária, como no fragmento: “ACM é o último grande cacique que ainda não pulou do barco de Collor e o PMDB está na linha de frente dos que já discutem com Itamar Franco e formação de um novo governo pós-impeachment” (p. 150).

pcfarias-collor-presidente-impeachment-caras-pintadas-08-size-598Vemos em destaque a ideia de um fim de ciclo da impunidade dos poderosos; ainda não se sabia o quanto poderia piorar. Claro que hoje vemos o colarinho branco ser penalizado, isso é fato, mas há ainda muito o que fazer. Em “Feliz 1994!”, Ricardo afirmava que “Desde pequeno ouço dizer que pior do que está não pode ficar, mas o das camisetas da Casa da Dinda faz uma força danada para provar a cada dia que pode piorar, sim” (Idem, p. 39).

Foi com essa conversa que um palhaço virou deputado federal por São Paulo e a coisa piorou muito ainda. Refletindo sobre Brasília durante a gestão colorida, o cronista observa que “Parece que a cidade perdeu o amor-próprio, e as pessoas, simplesmente, entregaram os pontos. Nem no auge da ditadura dos fardados respirava-se um ar tão poluído de safadeza, não se via tanto relaxo por todo canto, tanta falta de esperança” (Idem, p. 51).

560ffc3f-74a7-4e6b-b8d8-c6ae45c65b85Estamos no ano de 2016, passaram-se mais de vinte anos e a coisa continua a desandar. O aviso que o repórter dava em outra crônica era o de que os escândalos da era Collor acabariam em algum tipo de rega-bofe, senão vejamos:

É feijoada tão grande que deve ser preparada dentro da piscina, reunindo em volta todos os filhos de dona Leda reconciliados, o esquema PP, Bernardo Cabral e dona Zuleide, Zélia e Chico Anysio e, por que não?, toda a escolinha do professor Raimundo, Magri, com seu bigode novo, indignado com a corrupção, todos eles, enfim (Idem, p. 102).

macunaimalgIsso me lembra o filme de Nelson Pereira dos Santos, adaptado da obra de Mário de Andrade, Macunaíma, em sua cena final quando o protagonista engana a Venceslau Pietro Pietra, que representa a usurpação do capital nacional metaforizado na muiraquitã e o fez mergulhar na piscina que mais parecia uma feijoada completa, e que na verdade era um caldeirão repleto de algum ácido que fazia com que os corpos mergulhados nessa infusão passassem desta para uma melhor.

O Brasil passado a limpo que se promete há tempos continua longe de se ver na prática. O autor do livro projetava que “Quem sabe, daqui a vinte anos, a gente vai poder comemorar a terceira lua-de-mel em Campos do Jordão, sem ter que lutar contra mais nada, mas a favor da vida dos nossos netos, simplesmente” (p. 120).

collor-golpeKotscho não acertou em todas as suas previsões, o que não diminui em nada a qualidade do livro. Ao afirmar que “Daqui a dez ou vinte anos, quando nossos filhos e netos lerem a crônica desses dias, eles haverão de ter a certeza de que nós criamos vergonha na cara e ninguém, nunca mais, ousará transformar este grande país no quintal da Casa da Dinda, ou seja, de quem for” (p. 173), certamente ele não estava com o faro bem apurado. Os cães ladram, a caravana passa e quem ficar por último, mesmo que não seja mais novidade, pode ficar para mulher do padre. Ou que vá reclamar ao bispo!

*Luiz Renato de Souza Pinto é poeta, escritor, professor, pesquisador, botafoguense e caximir até o fim.

 

 

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here