Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Não padeço mais desse conflito. Houve um tempo que meu gosto espelhava-se em um padrão de qualidade, em uma reprodução da aceitabilidade de um grupo social, a fim de definir meus gostos. Mas isso faz tanto tempo que nem sei mesmo dizer quando acabou. Em matéria de cinema, por exemplo, sou capaz de gostar de Akira Kurosawa e de Julia Roberts, e isso não me faz sentir mal estar algum. Quando falo de livros, de literatura, especificamente, de literatura brasileira, espaço em que navego com mais tranquilidade e interesse, a coisa não é diferente.  Gosto de pensar no cânone por dentro e por fora. Gosto mais de Esaú e Jacó do que de Dom Casmurro e não sei se isso é uma blasfêmia.

Conheci Franklin Carvalho em Salvador, no início de maio deste ano. Fui apresentado ao vencedor do Prêmio SESC de Literatura – categoria romance, de 2016 no dia em que falei, ao lado de Letícia Wierzchovski, para uma plateia de artistas e pessoas ligadas à literatura na capital baiana. Não houve tempo para entabularmos uma conversa qualquer, mas a satisfação foi grande, uma vez que o Serviço Social do Comércio tem implementado um excelente trabalho no campo literário com o projeto Arte da Palavra, que brinda nossa cidade com algumas atividades ao longo do ano.

Autor de Céus e Terra, Franklin, ao lado do pernambucano Mário Rodrigues, estará nesta quinta-feira próxima no SESC Arsenal para brindar a comunidade cuiabana com um bate papo sobre suas obras, o viver literário e a realidade ficcional que experimenta em sua trajetória. Li Céus e Terra e posso dizer que gostei. Não posso dizer que é um bom livro, uma vez que gostar é diferente, pois não implica em juízo de valor. Creio que a obra desperta muito interesse pela narrativa entremeada de memorialismos e divisões entre o plano material e espiritual de algumas personagens. Mas daí a dotá-la de influência de um realismo mágico, como críticos têm se manifestado, penso haver certo distanciamento; ocorre que este espaço não me permite divagar nessa ensaística, ficando o questionamento para um momento posterior.

 

Receita para se fazer um monstro, por sua vez, é daqueles livros em que o leitor de tão provocado não consegue se manter em uma faixa de equilíbrio. Dotado de uma capacidade extrema de indignação, o discurso narrativo produzido por Mário Rodrigues faz do leitor um joguete em suas mãos e dignifica-se, de maneira acintosa, a atacar os valores preconcebidos por certo bom senso e respeito aos lugares-comuns.

 

Lembro-me de que, aos vinte e poucos anos, pelos idos dos anos 1980, ao ler o clássico As dores do mundo, de Schopenhauer, fui tomado por um sentimento de asco profundo pelo autor, pela condição humana, pelo desrespeito à figura materna, como interpretei naquele momento de minha vida. Foi dos poucos livros que abandonei sem terminar a leitura. Penso que isso se deu em função do amor que sempre tive pela minha mãe e que, tendo-a perdido por aquele tempo (já faz 31 anos de seu desencarne), isso tenha desencadeado um processo interno de autocomiseração que travou a leitura da obra e até hoje espero a oportunidade de ler a obra novamente.

Agora, novamente às voltas com a debilidade emocional afetada pelo estado de saúde de meu pai, também frágil, escrevo esta crônica para falar desses dois autores, de seus livros premiados (o de Mário ganhou o prêmio na categoria contos, também em 2016) e fico indignado, como leitor, com as peripécias infantis narradas com maestria pelo seu gênio criativo. Se a respeito do livro de Franklin, de que gostei, não emiti juízo de valor, não posso fazer o mesmo com o de Mário. E pelo simples fato de que sua escrita é arrebatadora.

Senti engulhos por muitos momentos; detestei as personagens egocêntricas e quase endemoniadas pelo egocentrismo exagerado de crianças sem limites. Não há limites para as maldades que as personagens de Mário realizam. Não há limites ou regras para a escrita criativa do pernambucano de Garanhuns que, certamente, o colocará em um degrau acima na produção literária contemporânea (questão de tempo).

Franklin ambienta sua obra no ano de 1974, auge do “milagre econômico”. Os verdes anos do autoritarismo fazem bem ao ambiente mágico da narrativa. Mário não localiza nenhuma baliza temporal para suas narrativas. O livro é apresentado como um livro de contos e fico pensando se concordo com tal classificação. A meu ver, todos os “contos” dialogam entre si e fazem com que o leitor crie um fio condutor para os fragmentos. Penso que esse procedimento faz com que se possa pensar a narrativa como uníssona e dotada de um construto identitário que poderia muito bem se encaixar em um rótulo distinto, como por exemplo, romance experimental.

Mas fica para o leitor curioso o espaço da discussão. Primeiro conhecer os autores, que estarão em nossa cidade nesta semana; depois, ler os livros e assim poder, cada qual com seu arcabouço teórico, tecer seus juízos de valor. Lembro-me de uma fala de Mário de Andrade, dessas que recheiam os compêndios de literatura brasileira e dão suporte às pesquisas secundaristas de obras literárias em que o cérebro modernista, indagado sobre o que seria conto diz que “conto é tudo aquilo que o autor do escrito chama de conto”.

Franklin e Mário que nos esperem, pois queremos perguntar algumas coisas e ouvir de suas próprias bocas alguns impropérios sobre o que é a literatura e como se faz literatura em um país retórico, eclético, tão plural, chamado Brasil.

*Luiz Renato de Souza Pinto é ator, professor, poeta e escritor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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