Ela criou um universo inteiro de arte. Com suas mãos pequenas e delicadas fez-se mundos. Para ela, tudo possui cor, brilho, uma magia que é encarnada mesmo em suas peças mais radicais, em suas bonecas mutiladas, como nós, mulheres, como o mundo. Suas peças que remetem a um pós-apocalíptico, a um futuro, um passado, que confundem-se com o presente.

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Nascida após tempos sombrios, ainda pode ver o pós-guerra em sua cidade natal, Santa Maria (RS). Mas a arte e a poesia predominaram em toda sua vida. E das sombras, das feridas do passado, criou um universo inteiro para si, para acomodar todos os seus sonhos e cores que mereciam uma vida fora da imaginação, da mente, do sono.

Eu poderia discorrer longamente sobre ela nestas linhas que se seguem. Poderia dizer como declama Fernando Pessoa, ou que crescemos rodeadas por suas histórias, lidas de páginas antigas dos seus livros de contos russos, e nós crianças, inebriadas com o cheiro de vinho e pelas incríveis aventuras dos personagens. Poderia dizer que ela fez as decorações dos nossos aniversários, que ela foi professora na nossa escola, que ela trabalha com o seu projeto “Não descarte, faça arte” desde quando me entendo por gente.

Poderia lembrar como ela criou uma árvore de natal de muitos metros, toda de latinha, ou dos seus peixes de garrafa pet. Ou então de como transformava-se em suas personagens paramentadas nos palcos do Caximir. Poderia lembrar de como íamos ao bosque da UFMT para brincar enquanto o seu lobo não vinha.

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Poderia me distanciar para falar dela, como ditam as regras do suposto bom jornalismo aos moldes americanos. Mas nada disso seria real, e prefiro escrever sobre aquilo que me toca e vive em mim. Dentro do seu ventre, não discordo que já ouvia música, sentia sua poesia, era inundada pelo seu amor pela arte, pela vida.

Não cheguei a falar dos seus desenhos, das suas pinturas, das histórias dos nossos gatos que passou para o papel em um livro infantil que nunca saiu de sua gaveta. Poderia falar sobre tanto que seria um texto inesgotável. Afinal, ela respira arte, é uma artista de tantas linguagens que é difícil encontrar objetividade para falar sobre. Mas devo me ater ao que ela fez neste ano. Em 2016. Sua busca incessante pelo seu passado, pela família, por aquelas linhas que nos ligam e são invisíveis. Ela refez seu percurso.

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Anna Marimon conquistou o segundo lugar do 25º Salão Jovem Arte. Uma volta ao tempo. Ainda era uma menina quando venceu o primeiro Salão, quando havia acabado de chegar em Mato Grosso. Mas percebo que esta menina está sempre ali, por detrás dos olhos curiosos e do sorriso às vezes até inocente. Por isso é tão difícil falar sobre ela, minha mãe, a artista da minha vida.

Sua obra “…E o tempo” conta sua história. Engavetada. Anna e suas gavetas. O arquivo antigo de madeira que morava em nossa sala, estava ali desde quando me percebo existir, e seu mistério envolto em minhas lembranças. Explorava suas bandejas como a procurar segredos que não me pertenciam. Agora, ela me conta que o arquivo era do meu avô, seu pai, Ben Hur Marimon, advogado, recebeu como forma de pagamento de algum trabalho.

13267853_1612511752399229_248705869939942758_nNo imenso salão do Palácio da Instrução, comecei a abrir suas gavetas para descobrir os segredos que deixou ali. Percebi que era criança de novo e me vi em retratos, em suas cartas escritas à mão endereçadas a ninguém, suas poesias, seus desenhos, seus trabalhos de couro, toda a sua história, contada em suas gavetas. Guardadas, encerradas, como uma vida a ser descoberta, entre gavetas que se abrem e se fecham.

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Toda sua vida, todos os seus pedaços. A carga emocional, autobiográfica, de memória, de história, lhe trouxe aquele segundo lugar que tinha gosto de primeiro, de recompensa, reconhecimento, após anos e anos fazendo arte, não só para si, mas para deixar o mundo um lugar menos cinza, menos dolorido.

E essa arte ela levou consigo por toda Cuiabá, por todos os lugares onde passou. São suas intervenções do Sarau das Artes Free, que em uma tarde, desenhava em sua mente o que viria a ser a festa a noite. Os painéis, os escritos, a disposição dos elementos. Ela cria cenários. E de repente, um simples quintal se transforma em algo mágico, com luzes coloridas, outras que piscam, com peixes-pet que nadam em um aquário de árvore de acerola.

Simultânea a volta da sua própria história, ela também participou da Exposição Substantivo Feminino no Museu de Arte de Mato Grosso, com mais de seus pedaços, suas bonecas, suas partes, espalhadas.

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E então para completar o ciclo, o seu retorno, o início e o fim, a gênese. O nascimento. A família. No Museu de Arte e Cultura Popular na UFMT, ela (re)constrói outro mundo: o da infância. Reconstitui parte da sua árvore genealógica. Uma mala antiga guarda os mapas que marcam a Espanha e a Alemanha, de onde vem o encontro das duas famílias, Marimon e Schirmer. E o novelo de lã que liga toda a narrativa. As agulhas do tricô de Zita, sua mãe, inunda minha memória com todos os casacos, gorros e cachecóis trançados em presente.

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O novelo leva às fotos, aos objetos com seus passados afetivos, como testemunhos do tempo que passou e levou a tudo. Alguns são apenas representação, uma releitura. Outros estiveram lá: o abajur, a caixinha de joias, a bandeja, as roupas.

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As pessoas se vão. E o que ainda é matéria permanece. A memória fica. E se liga como um novelo, que Anna Marimon se dispõe a desenrolar com sensibilidade, como que (re)descobrindo os tesouros das suas próprias lembranças, da sua história, da sua arte. E nesta descoberta encara-se defronte com a sua própria imensidão, a sua transcendência. Tudo pode ir. Mas a arte fica.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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