Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Conheci Clarissa Loureiro no final do mês de agosto de 2015. Agosto, mês de cachorro louco. Algo de misterioso pairava naquele olhar que insistia em se fazer distante. E de fato, o era. Seu nome me lembrava algo bom, mexia com memórias de infância, como pude dizer a ela em outra oportunidade. O que me vinha à cabeça era mesmo a obra de Érico Veríssimo. Tenho procurado conhecer sua obra literária, curioso que estava para ter a oportunidade.

b1421f3edd0ebef6114f1d801b5eb908Eis que Lilith se me apresenta como primeira leitura de sua ficção. As primeiras sensações ao ler o conto foram de uma sublimação corrompida pelo ato solitário de encantamento. O respeito e a condição do instinto prevalecendo sobre qualquer outro sentimento que completa a cena e que me fez vibrar. Do encontro das águas sugerido pela narrativa emerge uma liquidez e volatilidade que faz da água o elemento mais forte, dentre os quatro. Fogo, terra e ar são coadjuvantes da orquestração mítica do desejo solitário. E as antevisões míticas entretidas na tessitura do texto vão recobrindo com camadas semânticas de profundidade relativa um conjunto de intencionalidades a serem descobertas parcimoniosamente pelo leitor; quer de maneira paciente, quer de modo súbito e alvissareiro, cada qual preso a um estilo decodificador e raso e ou fundo de curiosidades.

A lua negra, com seu manto de sombras, apresenta-se como uma luzerna a banhar de magia o encontro das águas represadas que se fundem em um orgasmo múltiplo ao entardecer. A vermelhidão dos cabelos e a coloração do céu reproduzem o universo da mitologia que faz das virgens alvos de uma imposição do texto, o próprio falo, objeto de desejo de todo escritor, mas também do pacto indissociável com quem se coloca diante dele: o leitor.

A comunhão com o verbo faz do conto um meio para determinado fim. A palavra e sua alteridade na construção sígnica de desígnios desde há muito anunciados. Lilith se reafirma frente às verdades de Eva. Quem a cobra, de que paraíso tanto se fala? A hóstia consagrada no papel vaticina certa cumplicidade com a escrita. Lilith e Eva, duas faces de uma metáfora, em forma de céu e de costela.

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Lilith/Adão & Eva

Clarice escreve um romance no momento. Pude ler algumas paginas dessa narrativa, intitulada Laurus. O texto introdutório funciona como uma espécie de apresentação de um narrador que presentifica uma história como a preparar o leitor para que se atenha a uma função arquetípica, quer seja a de apresentar uma genealogia familiar, a busca de um significado para tal brasão do qual se torna representante legítimo de um legado histórico, mítico, crítico, social. O mimetismo entre o narrador e Tirésias vai se desenhando pelo conjunto de características e ações que atualizam o mito, tal como Joyce o fez com Ulisses, trazendo-o para a Inglaterra que abria os olhos para o século XX. Cada qual com sua odisseia; mas deixemos de lado a Joyce e falemos de Loureiro.

Logo no primeiro capítulo, sugere-se uma alquimia na escrita cujo envolvimento com o leitor é promovido não por meio de metalinguagem, mas pelo poder de sugestão de analogias profundas e simétricas com o arcabouço grego da mitologia. Parece-me que a cegueira do narrador aproxima-se mais da cegueira branca de Sara MAGO do que da de Tirésias, ponto de partida. Entre um eterno retorno e a genealogia da moral, o capítulo apresenta uma discussão familiar na qual tematizam-se questões existenciais para o pano de fundo da aventura que se aventa.

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Brújula Intersexual

Há, como em Lilith, uma alusão especial ao entardecer, momento que parece portador de certa magia condutora de esperança e capaz de antever coisas boas. Cabelos e sombra, céu e água, similitudes. “É tudo uma questão de ser orvalho”; Vejo muita gente por entre o texto, ora Drummond, ora Murilo Mendes, ora Érico Veríssimo e por aí afora, mas vejo Clarissa, essa personalidade forte, de imagens requintadas aquiescendo um espírito altivo e complacente para com as pessoas, as personagens e as coisas.

A literatura é corpo para uma viagem e a travessia, seja de canoa, de carro, ou de bicicleta, projeta nossos pés sobre ovos, com olhares de algozes sempre alertas a fim de puxar o gatilho da repreensão normativa, autoritária, em busca de assassinatos criativos a sangue frio. A linguagem rediviva intumesce o orgulho e propicia condições para que o mito perdure. E do alto do brasão familiar, da estatura indelével da boa literatura, ergue-se, frondosa, mais uma ramificação da verve ainda imberbe da literatura brasileira que, no dizer de Antonio Candido de Melo e Souza, ainda é um braço da portuguesa, mas feito qualquer ramo de cajueiro, arrasta-se aos pés da natureza mãe e estende seus galhos sob outra raiz, primas-irmãs de mesmo pai e generosa mãe a frutificar muitos e muitos louros.

A gestação de um novo livro é sempre um pacto e como os bons, é preciso que haja sangue. Que hemorragias criativas tomem seu lugar na produção de mais um feto, um fato, que venha depois de Mau Hábito e Invertidos a nova obra dessa bela escritora.

*Luiz Renato de Souza Pinto é poeta, escritor, ator performático e professor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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