Por Julianne de Quadros*

Se cheguei a correr foi até ficar sem fôlego, isso ou a gravidade exercida sobre mim era ainda maior, uma sensação de desenho animado, como se uma nuvem negra se mantivesse apenas e só sobre a minha cabeça.  Só que isso tem nada a ver com tempestade, mas do íntimo. Gostaria que as cores que lembro fossem a do momento, mas eu colori depois do jeito que quis, entenda que a única coisa que precisa saber é que para mim o sentimento era de perseguição, eu fugia sim e com muita dificuldade, seja lá o culpado, o que me atrapalhava era o joelho, este com mais cicatrizes do que se pode ver, todos com boas travessuras de criança feliz, um tanto de queda de bicicleta de todos os jeitos, andando sem as mãos na chuva, tentando segurar o guidão com as mãos cruzadas, nada graças a grandes feitos, talvez a diversão era cair mesmo, porque na rampa eu nunca andei talvez porque previsse um osso quebrado, pois garanto que estes estão intactos, pelo menos era o que pensava, pois em algum ponto da fuga percebi que o que pesava era um gesso pela metade do tamanho de dois palmos em volta do meu joelho esquerdo, nessa altura não corria mais, obviamente mancava, porém sem dor nem medo, confesso que muita coisa me amedronta, mas o sentimento eu enfrento, às vezes ele vence, garanto que é porque eu permito. Além do mais eu seria interrompida pelo que viria, o que outrora se fazia de uma calma contemplação agora eu era inundada por ele, eu não podia parar, segui porque era o que eu fazia, o mundo eu carregava no joelho, porém, agora imerso na água, pesava quase nada, e por alguma razão só então percebi que tinha um companheiro de fuga, eu o conhecia, mas nome eu não tenho e lamento dizer que nem a face, suponho que fosse meu cunhado, o primeiro homem da família depois da tourada, superado, ou não, passaram-se anos e importâncias se tornaram tão pequenas que apesar de existirem não me alcançavam mais, acredite, eu conseguia me convencer disso por muito tempo e, veja, desconfio que essa perseguição que vos conto contradiz tal convicção. Seja como for, eu não havia sido alertada sobre as exigências divinas, este invocado em tempos remotos, deve haver um conhecimento inerente ao ser vivo, ligações que atravessam tempo e espaço, não posso provar e nem quero fazê-lo, só acredito que em algum momento você percebe, nem que seja num sonho que esqueceu ao acordar. Antes que eu delongue ainda mais esta prosa, lembro que fugia de um animal silvestre, não tinha um nome comum e sim eu estava na mata, eu sempre estou lá, o lugar mais seguro entre as confusões da minha mente e a da alheia, a maneira que o céu se separa do chão me coloca de volta na ordem milenar. Não poderia ser diferente, veio mesmo de lá, da mata adentro em direção ao rio, fui levada até o momento em que me dei o direito de realmente ver do que eu fugia, eram duas, uma maior e a outra menor, não sei como, porém eu sabia o nome, eu estava encurralada. À frente, correntezas mortais e muito próximo de mim aqueles dois animais, duas criaturas lindas, crias da natureza do qual eu fugia vorazmente e ofegante. Imersa no rio cheguei a sentir o frio arrepiar minha espinha, nesse momento a água batia na minha cintura, um segundo e uma vida inteira era facilmente confundida e fui tomada por um longo despertar em busca de significados que venho encontrando a cada dia, uma lembrança que me protege, fortalece e me engrandece de sabedorias ocultas, muito além da compreensão da minha própria existência, minha pobre consciência humana não dá conta. O silêncio dos sussurros poéticos, um bloqueio prolongado não há de impedir o grito abafado pela carne que me cobre e pelo sangue que me banha. Foi quando no revelar dos devaneios percebi um dos animais vagarosamente vindo em minha direção, já não sabia para onde ir, as opções que me cercavam eram mortais, de um lado a imensidão da água verde escura, profunda, desconhecida, do outro lado, à margem do rio, já com as patas cobertas de água uma das jaguatiricas, sim, sem dúvidas eram jaguatiricas, já estava perto demais e reparei seus olhos doces de ente inocente, mas ela não me enganava, sua origem selvagem e carnívora me eram óbvias, as virtudes daquele animal não me poupariam de ser vítima da circunstância, eu não temia, necessariamente, a morte, mas temia algo terrivelmente mal, temia algo pior que a morte, a dor, além do mais eu me encontrava indefesa e vulnerável, minhas mãos pequenas e minha pouca força eram o meu único escudo contra o perigo que chegava mais perto, cada passo um tremor e os passos não cerravam, até que pude alcançá-la com os meus braços estendidos, não entendo como, mas eu a segurei junto a mim como por muitas vezes peguei meus pequenos gatos, fiquei surpresa, pois agora, depois de toda correria, de tanto espanto, aquele belo animal se manteve imóvel em minhas mãos, olhando-me fixamente, ah, aqueles olhos doces. Se eu pensei ou se algum som foi emitido pela minha boca eu não sei, mas questionei: não vai me atacar? E com a mesma incerteza sobre os sons eu entendi uma única resposta: se você pensa que vou lhe fazer mal como agiria diferente perante os seus olhos?

*Julianne é contadora, gestora e ativista cultural. 

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