Eu sou uma maleta. Não, não é o que vocês estão pensando. Eu sou uma maleta mesmo. Nasci em 1951 numa fábrica do sul. Meu couro é de alta qualidade, texturizado e encerado para durar muito. Se bem que não é bom durar muito. Isso significa ficar velha, fora de uso, encostada. Fui para a vitrine de uma loja no mês de maio. Entre todas as maletas era eu a mais bonita. Pequena e resistente, com fechos cromados e um belíssimo forro de cetim. Não demorou muito para que alguém me comprasse. Era uma  mulher jovem  preparando seu enxoval de casamento. Lembro-me da sua voz dizendo: -“É perfeita! Veja só o acabamento.Vou levá-la à Paris!” Falou sorrindo, imaginando as borbulhas do champanhe sob a luz da noite.

Não fomos a Paris. Fomos para o Rio de Janeiro. A avó de Clarissa, esse era o nome da moça, morreu no dia do seu casamento, deixando-lhe de herança o apartamento na rua da glória, em frente a praça Paris, réplica de um famoso jardim da cidade luz. O marido, oficial da marinha, era um homem mais  velho, reservado, ocupado demais com assuntos de estado. Ela passava todo tempo só, escrevendo poemas, contos, e desenhando num grande caderno que levava em seus passeios matinais no parque, ou na marina ao entardecer.

Ninguém imaginava que Clarissa fosse uma artista. Sei disso porque era dentro de mim que ela guardava seus diários e blocos de desenho, junto com a delicada camisola de seda que sonhara usar na noite de núpcias em Paris.  Toda tarde saia para passear no jardim público, num “faz de conta que estou lá, onde nunca fui.” Passava horas escrevendo e desenhando paisagens imaginárias. Ao voltar guardava no meu interior o seu segredo. Num belo dia de verão abriu-me para escrever no seu diário que em breve seria mãe. Nessa ocasião ela devia ter uns trinta anos. Um pouco tarde para a maternidade conforme os padrões da época, mas em Clarissa tudo era fora de tempo.

Com a chegada da pequena Júlia a casa encheu-se de ares graciosos, era uma família alegre de se ver.  Foi um longo período em que permaneci fechada. Poucas vezes ela recorreu a mim para abrir as portas do seu mundo secreto. Os anos se passaram e quando a menina chegou a adolescência foi estudar em colégio interno por vontade do pai. Clarissa ficou só. Refugiou-se na literatura e escondia em mim os livros proibidos pelo marido. Certa vez, ele chegou mais cedo e a encontrou sentada sobre a cama, vestida com a camisola de seda,  boca pintada de batom rubi, olhos delineados com lápis preto, cabelos desarrumados em cachos revoltos, papel e caneta na mão, e para completar, um livro de tema proibido ao lado de uma taça de vinho.

Surpreso e indignado, gritou asperamente: -“O que significa isso? Acaso ficou louca?!” Clarissa encolheu-se sobre si mesma enquanto o via arrancar as folhas dos seus cadernos lançando-os pela janela e amassar entre os dedos os desenhos coloridos. Uma crueldade mórbida. Pegando-me pela alça num gesto grosseiro, teria me jogado na rua se ela não intercedesse: -“A maleta não!” Disse secamente. O marido olhou-a espantado como se a visse pela primeira vez e ameaçando-a saiu batendo a porta com violência, deixando-a ali, entregue a mais profunda tristeza.

Depois disso só em raras ocasiões ela atrevia-se a abrir-me, arrumava com as mãos tremulas os escritos que restaram e os desenhos dos barcos solitários da marina navegando na desilusão da sua alma.  Contemplando o por do sol, imaginava-se do outro lado do mar oceano, no velho mundo,  passeando nas ruas de Paris. Perdia-se em divagações, ocultando a todos a sua  vocação. Numa tarde chuvosa e fria, o marido muito doente, deitado em seu leito de morte assim falou: -“Perdoe-me por não levá-la a Paris.” Dito isso, expirou. Perplexa e atônita diante do morto, ela imaginou se a vida ainda lhe brindaria com a realização de um sonho.

Grandes mudanças ocorreram a seguir. Sua filha Júlia retornou para casa, grávida e solteira. A chegada do neto encheu de vida os dias tristes de Clarissa, que voltou a escrever e a desenhar suas histórias fantásticas. Acordava alegre e saia de casa com o menino pela mão em longos passeios pela orla. Ainda hoje lembro da voz infantil pedindo: -“Só mais uma historinha vovó.“ E ela sorrindo respondia-lhe que já era tarde, hora de dormir pro corpo descansar, e guardava os seus preciosos escritos no meu interior, apagava a luz e dormia o sono dos justos.

Numa manhã de primavera Clarissa não acordou, passou o dia todo dormindo. Foi a última vez que a vi.  Depois vieram uns homens de branco e a levaram dali em completo silencio. Permaneci muito tempo só na escuridão do quarto, sob a sombra do criado mudo. Ao meu lado descansavam as pantufas azuis, agora abandonadas no esquecimento. A poeira acumulava-se sobre mim com o passar dos dias. Pensava nunca mais ver a luz do sol quando a porta se abriu e entraram umas pessoas estranhas, falando alto, abrindo as janelas, fazendo barulho, arrastando móveis do lugar, esvaziando gavetas.

Percebi que seriamos todos retirados dali. Eu particularmente só conhecera a loja e aquele quarto até então. Um dos homens da mudança se aproximou, e pegando-me pela alça  exclamou:-“ Olha só esta maleta! Parece coisa fina!”  Já ia colocando-me dentro de uma caixa quando um outro falou: -“Joga fora essa velharia, isso deve estar cheio de ácaros.” Vamos embalar os móveis e jogar o resto fora.“ Parte do resto era eu. Fui parar na calçada da rua dentro de um container cheio de lixo e entulho de construção.

Passei a pior noite de toda a minha vida, na companhia de baratas e de um rato pestilento que tentou me roer para fazer um ninho no meu interior, sorte que sou muito resistente e o malvado acabou desistindo. Ainda assim trago até hoje as marcas dos dentes do infame. Ao amanhecer vi uma turma de mendigos que se aproximava. Entre eles um senhor grisalho, de pele escura e cabelos revoltos. Pegou-me com suas mãos encardidas e levou-me para uma rua movimentada onde ficava a feira livre. Ali, sobre um pano estendido no chão, fui depois de tantos anos, colocada de novo à venda.

O burburinho dos pregões me deixou atordoada, gente de todo tipo circulava entre as barracas, comprando frutas, flores, peixe, frango, doces, artesanato e quinquilharias do Paraguai. Os dias passaram e ninguém se interessou por mim, tanto que o mendigo já pensava em adotar-me para seu próprio uso, uma idéia que não me agradava de jeito nenhum. Toda vez que ele me abria para mostrar-me por dentro, as pessoas se espantavam: -“O que são estas folhas e cadernos?” O homem respondia: -“Fazem parte da mala, se for comprar tem que levar junto.” Diante disso os fregueses torciam o nariz e acabavam levando outro objeto qualquer.

Certo dia, ao chegar ao local onde costumava expor ele encontrou seu ponto já ocupado, de modo que fomos para o final da feira, próximo a uma barraca de flores. Naquela hora senti saudades de Clarissa. Talvez viessem dali aquelas rosas bonitas que enfeitavam a casa nos domingos. A banca do florista estava cheia de gente. Uma senhora alta, de cabelos prateados destacou-se da pequena multidão e aproximando-se, perguntou ao mendigo quanto queria pela pequena mala. Examinou-me com olhar atento, abriu-me e sem dizer uma única palavra pagou ao homem o combinado.

Imaginem o meu alívio ao ser levada dali, não suportava mais ter de dormir ao relento e ser exposta assim sem nenhum respeito pela minha pessoa. Fomos para um hotel confortável onde a senhora ordenou a sua secretária que me limpasse com cuidado. –“É uma relíquia”, disse ela enquanto abria-me para retirar do meu interior os desenhos e os cadernos de contos. Colocou-os sobre a mesa e comentou de si para si: -“É curioso, parece que temos aqui uma obra singular. Quem diria, são contos ilustrados, e o material é belíssimo.” Sua fisionomia iluminou-se imediatamente ao constatar o que tinha em mãos.

Para minha alegria e surpresa a senhora de cabelos cor de prata era famosa dramaturga e morava em Paris, para onde partimos na semana seguinte. Foi uma grande emoção chegar depois de tantos anos à cidade luz, à qual estava predestinada desde o dia em que Clarissa me comprou. Quanto aos contos e desenhos vocês já devem imaginar o que aconteceu. Foram publicados, adaptados para o teatro e o cinema e enfim o mundo conheceu aquela bela obra um pouco tarde, mas em Clarissa tudo era fora de tempo.

 

 

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here