Por Arthur Santos da Silva

A praça é do povo, como o céu é do condor. Mas falta uma asa ao condor.

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Foto: Arthur Santos da Silva

O pássaro está com fome, sujo e sem roupas. Pessoas bebem na praça como se fossem pessoas. Deuses com tanta violência, mas tanta ternura.

Como firmar um pacto entre os deuses sentados e os pedaços de carne que caminham entre os deuses sentados? Faltam braços para o contrato.

Qual é a sua forma?

Tem gente com fome na Issac Póvoas. Tem gente com fome na Getúlio Vargas. Tem gente com fome na 24 de outubro. Tem gente com fome na 13 de junho. Tem gente com fome na Joaquim Murtinho.

Tem gente com fome na Barão de Melgaço. Tem gente com fome na Comandante Costa. Tem condor sem sobrenome e com fome, comendo a própria asa.

Na praça a música finge. “A Grécia falhou com os desajustados/ O presidente falhou com os desajustados/ O governador falhou com os desajustados/ O prefeito falhou com os desajustados/ A religião falhou com os desajustados/ A filantropia falhou com os desajustados/ Menores desajustados”.

Eu, ajustado, assumo o risco. Faço parte dos radicais extremistas. Proposta: tracemos nossos desafios para vencê-los. Caso derrotados, levantemos. “Levante sacode a poeira e dá a volta por cima”. Esse é o adágio dos deuses. “Homem não chora”. Esse é o adágio dos deuses sempre idiotas.

Deuses idiotas, devemos propor nossos desafios e depois poderemos beber na praça entre as carnes com fome. Dentro de casa todo mundo ama. Se tem gente com fome, dá de comer.

Deuses com tanta violência, mas tanta ternura.

Niños heroes são eles, os pássaros mutilados.

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Foto: Arthur Santos da Silva

Diálogo entre niños heroes e deuses (adaptação de Terra em Transe):

— Eu recuso a certeza, a lógica, o equilíbrio! Eu prefiro a loucura do vento! – disse o menino.

— Assim é tão fácil…- respondeu Deus (uma mulher).

— Fácil?… rompendo com tudo e com todos… sacrificando as mais fundas ambições…

— O que sabe você das ambições? Eu queria me casar, ter filhos, como qualquer outra mulher… eu fui lançada no coração do meu tempo. Eu levantei nas praças meu primeiro cartaz. Eles vieram, fizeram fogo, amigos morreram… me prenderam… me deixaram muitos dias numa cela imunda… com ratos mortos… me deram choques elétricos, me seviciaram e me libertaram… com as marcas. E mesmo assim eu levei meu segundo, terceiro e sempre cartazes e panfletos e nunca por orgulho. Era uma coisa maior, em nome da lógica de meus sentimentos. E se foram as ambições normais de uma mulher normal. De que outra ambição posso falar que não seja de felicidade? Tendo pessoas solidárias e felizes?

— A fome do absoluto…

— A fome?…

— Eu tenho esta fome! Vem comigo, Deus! Não fique como os fanáticos, à espera das coisas que não acontecem antes que nos acabemos! Vem comigo! A vida está acima das horas que vivemos! A vida é uma aventura…

— Você não entende… um homem não pode se dividir assim… a política e a poesia são demais para um só homem… eu gostaria que você ficasse conosco. Volte a escrever.

— Deus, não anuncio cantos de paz/ Nem me interessam as flores do estilo/ Que definem o mundo em que vivo. Ah, deuses…

— Não me causam os crepúsculos/ A mesma dor da adolescência/ Devolvo tranquila à paisagem/ Os vômitos da experiência…

— A poesia não tem sentido… palavras… as palavras são inúteis.

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Foto: Arthur Santos da Silva

Está lançado o manifesto antropofágico dos niños heroes. Um deles segue sem o braço esquerdo. Precisarão escolher um líder. Que seja um líder completo de fedor e sujeira.

— Um real para comer.

— Eu não tenho – dizem os deuses sentados.

É preciso manter o romantismo. No pão-de-açúcar, de cada dia, dai-nos, Senhor, a poesia de cada dia. Niño heroe, desabe sobre seu próprio peso. Eu lírico me despeço feito o Deus da metafísica canibal.

(Deuses com tanta violência, mas tanta ternura.)

Arthur Santos da Silva é paraibano, historiador e jornalista

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